Texto: Rodrigo Melo
Imagens: Acervo FPT — por Cristovam Melo
Percorrer o Centro da cidade de Fortaleza é reencontrar um repositório de curiosidades, ancestralidades e riquezas culturais do povo cearense. Ao observar o contraste entre o que esse espaço representava no passado e sua configuração atual, evidencia-se com clareza a transformação dos hábitos, dos costumes e da forma como a população passou a ocupar a cidade. A força histórica do Centro sempre esteve ancorada em seu comércio vibrante e na presença marcante dos vendedores ambulantes, que, por décadas, garantiram o sustento de suas famílias. O progressivo esvaziamento desses espaços levanta uma inquietação legítima: para onde foram essas pessoas e as histórias que carregavam?
Atualmente, eventos tradicionais como o Natal de Luz já não possuem o mesmo impacto sobre a região central da cidade. O fluxo comercial migrou, de maneira significativa, para os shopping centers, que oferecem conforto e segurança, mas, em contrapartida, afastam a população da experiência urbana coletiva e do convívio público. Embora tais espaços tragam conveniências e modernidades, cabe refletir: podem os centros comerciais substituir o valor simbólico, histórico e afetivo das praças e edificações que compõem o centro da cidade? A resposta a essa questão transcende o aspecto econômico, abarcando dimensões como a memória, o sentimento de pertencimento e a identidade sociocultural de Fortaleza.
Durante grande parte do século XX — especialmente entre as décadas de 1920 e 1970 — o Centro de Fortaleza consolidou-se como o principal pólo comercial, cultural e social da capital cearense. Suas ruas apresentavam intensa movimentação, com lojas, cafés, cinemas, praças e instituições públicas em plena atividade. Tratava-se de um verdadeiro ecossistema urbano, no qual a cidade não apenas funcionava — ela acontecia.
A Praça do Ferreira, o Cine São Luiz, os grandes armazéns, os bondes e as vitrines chamativas das ruas Major Facundo e Guilherme Rocha compunham um cenário dinâmico e plural. Nesse espaço, diferentes classes sociais se cruzavam; manifestações culturais emergiam com vigor; o comércio prosperava de forma pulsante. O Centro era sinônimo de modernidade, de encontros cotidianos e de uma vida urbana repleta de sentidos e significados (CORRÊA, 1995).
Entretanto, a partir da década de 1980, com a expansão acelerada da malha urbana e o fortalecimento de novos bairros de classe média, um novo modelo de consumo passou a ganhar força: os shopping centers. Climatizados, fechados, seguros e organizados, esses empreendimentos passaram a oferecer uma experiência de consumo padronizada e previsível — em contraste com a espontaneidade e a diversidade dos centros urbanos tradicionais (MONTE-MÓR, 2005).
Em consequência dessa mudança nos padrões de consumo, o Centro de Fortaleza passou por um processo de esvaziamento e posterior marginalização. O comércio informal cresceu, muitos prédios históricos foram abandonados ou subutilizados e, à medida que o dinamismo se dissipava, a percepção do espaço central passou a ser associada à decadência e à insegurança (SOUZA, 2006). Famílias, empresários e consumidores migraram para bairros como Aldeota, Meireles e outros pólos comerciais emergentes, reforçando, assim, a lógica de descentralização urbana (ROLNIK, 2015).
Atualmente, o Centro ainda pulsa — mas de maneira distinta. É nele que sobrevivem as feiras, os pequenos comércios, os artistas populares, os ambulantes, os espaços culturais independentes e a memória viva de uma Fortaleza que resiste ao esquecimento.
Redescobrir o Centro é, portanto, um convite à revisão dos hábitos urbanos, à revalorização do espaço público e à preservação do patrimônio material e imaterial que compõem a identidade coletiva da cidade (CHOAY, 2001; CANCLINI, 2013). Os shoppings não devem ser considerados vilões — são respostas às exigências da vida contemporânea. Contudo, é necessário reconhecer que essa transição teve um custo significativo: a perda do cuidado com o centro, da sua vitalidade e do vínculo emocional entre a população e o espaço urbano.
Reocupar, preservar e revalorizar o Centro de Fortaleza não deve ser encarado como um gesto nostálgico, mas como uma estratégia urbana urgente. Somente por meio desse movimento será possível construir uma cidade que honre suas raízes, cuide de seus espaços históricos e reconheça que o futuro também se edifica sobre os alicerces da memória.
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 1995.
MONTE-MÓR, Roberto Luís. Urbanização e globalização: as novas escalas da urbanização. Revista e-metropolis, n. 1, 2005. Disponível em: https://emetropolis.net/artigo/urbanizacao-e-globalizacao-as-novas-escalas-da-urbanizacao/. Acesso em: 05 jul. 2025.
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.