Texto: Rodrigo Melo
"O Relógio da Praça do Ferreira é um marco histórico, arquitetônico e afetivo de Fortaleza. Ele não apenas mede o tempo: ele guarda o tempo."
— Melo
Fragmento.
Como estudante do curso de Arquitetura e Urbanismo na FAECE, nosso projeto tem como objetivo trazer à luz fragmentos de uma história — muitas vezes, a nossa própria história — que é importante ser lembrada.
Quando eu era garoto, costumava esperar meu pai sair do trabalho por volta das 18 horas. Minha mãe nos levava para passear no Centro. Para ela, era apenas um passatempo. Mas, para mim, era algo mágico.
Lembro dos brinquedos expostos nas vitrines das lojas comerciais, mas o que mais me chamava a atenção era como aquela parte da cidade funcionava. Eu observava, curioso, aquela máquina viva que era o Centro de Fortaleza: pessoas indo e vindo apressadas, cumprindo suas rotinas nas empresas, no comércio, nos serviços. Era um fluxo massivo, constante, quase hipnotizante.
Mas, com o cair da noite, aquele cenário começava a mudar. As lojas fechavam suas portas e, pouco a pouco, um novo centro surgia diante dos meus olhos. Um centro noturno, voltado para as praças, para os becos. Era ali que muitos se reuniam para comer um churrasquinho, ouvir um som e conversar. Essa transição me surpreendia. Era como se a cidade tivesse duas faces, dois ritmos, dois modos de existir — e eu, ainda criança, me encantava com essa transformação.
A coluna da hora - projeto arquitetônico.
O projeto original do Relógio da Praça do Ferreira, conhecido como Coluna da Hora, foi concebido durante a gestão do prefeito Raimundo Girão e inaugurado em 31 de dezembro de 1933. O engenheiro responsável pelo projeto foi José Gonsalves da Justa, que adotou o estilo Art Déco, caracterizado por linhas geométricas e ornamentação estilizada, refletindo a modernidade da época .
A estrutura original media 13 metros de altura e era construída em concreto armado, com detalhes em marmorite polido. No topo, foi instalado um relógio de quatro faces, importado da América do Norte, permitindo a visualização das horas de qualquer ponto da praça .
Em 1967, durante uma reforma urbana, a Coluna da Hora foi demolida, o que gerou controvérsias e críticas da população. Somente em 1991, na gestão do prefeito Juraci Magalhães, a Coluna foi reconstruída, baseada no projeto dos arquitetos Fausto Nilo e Delberg Ponce de Leon, que buscaram resgatar a essência do monumento original .
O Relógio da Praça do Ferreira: Memória e Identidade de Fortaleza
O Relógio da Praça do Ferreira é um dos mais emblemáticos símbolos de Fortaleza, não apenas pela sua imponência arquitetônica, mas pela profunda ligação que mantém com a história e a memória coletiva da cidade. Inaugurado em 1933, o relógio foi projetado para ocupar o coração da Praça do Ferreira, que já era, desde o final do século XIX, o principal ponto de encontro da cidade. Ele substituiu um antigo coreto e consolidou o espaço como um verdadeiro "salão de visitas" dos fortalezenses.
A origem do relógio se conecta diretamente ao projeto de modernização do centro da cidade. Na época, Fortaleza passava por grandes transformações urbanas — ruas sendo calçadas, praças remodeladas — e a instalação de um relógio público simbolizava o progresso, a pontualidade e o espírito de modernidade que a capital desejava transmitir. Foi a Prefeitura, sob forte influência das ideias de urbanização inspiradas na Europa, que decidiu erguê-lo. O engenheiro responsável foi Adolfo Herbster, que desenhou o projeto combinando funcionalidade e beleza.
Impacto Histórico e Arquitetônico
Mais do que marcar as horas, o Relógio da Praça do Ferreira rapidamente se tornou um ponto de referência urbana e social. Era em torno dele que se marcavam encontros, que os discursos políticos eram realizados e que as notícias se espalhavam. O relógio organizava o tempo da cidade e, simbolicamente, também organizava o cotidiano dos seus habitantes. Com sua presença elegante e monumental, ele ajudou a transformar a Praça do Ferreira no centro nervoso de Fortaleza, onde se cruzavam todas as classes sociais.
Arquitetonicamente, o relógio se destaca pelo seu estilo clássico, sóbrio e harmônico com as outras construções da época. É um marco de como a arquitetura pública buscava dialogar com a noção de civismo e ordem. Sua estrutura esguia, com linhas verticais e detalhes minimalistas, insere-se na tradição de monumentos que simbolizam avanço e unidade urbana.
Um coreto é uma pequena construção, geralmente em formato circular ou octogonal, coberta por um telhado, onde costumavam acontecer apresentações musicais, discursos públicos e eventos culturais em praças e jardins das cidades.
Essa fotografia mostra o coreto que existia na praça antes de ser substituído pela Coluna da Hora em 1933. O coreto era um espaço central para apresentações musicais e encontros sociais, refletindo a importância cultural e comunitária da praça na vida dos fortalezenses da época.
No caso da Praça do Ferreira, o antigo coreto servia como ponto de encontro e de cultura — era onde bandas tocavam, oradores se manifestavam e a população se reunia. Substituí-lo pelo relógio foi uma forma de dar um novo símbolo à praça, refletindo o espírito de modernização da época, mas mantendo a ideia do espaço como um centro de convivência e vida social.
Ou seja, o coreto representava a alma cultural e pública da praça, e o relógio herdou esse papel, passando a simbolizar o tempo, o encontro e a identidade urbana de Fortaleza.
A Importância do Patrimônio e a Negligência Histórica em Fortaleza
Assim como muitos espaços emblemáticos de Fortaleza que hoje se apagam diante da pressa da modernização e da falta de planejamento, o Relógio da Praça do Ferreira é um símbolo que resiste — mas poderia facilmente ser mais um na longa lista de bens culturais esquecidos. A ausência de políticas públicas efetivas de preservação revela uma postura histórica de negligência por parte das gestões municipais, que tratam o patrimônio não como uma prioridade, mas como um peso secundário diante de obras imediatistas.
Segundo a UNESCO e o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o patrimônio cultural vai além da simples preservação física de prédios ou monumentos — ele representa a identidade de um povo, seus valores, sua memória coletiva. Cuidar do patrimônio é cuidar da nossa própria formação como sociedade. Ignorar isso é também ignorar o direito à memória e à dignidade cultural das futuras gerações.
Fortaleza, cidade rica em manifestações populares, espaços simbólicos e construções históricas, vê muitos de seus marcos se deteriorarem por falta de manutenção, proteção legal ou simples reconhecimento institucional. Locais como o antigo Cine São Luiz, o Passeio Público e tantas praças históricas são exemplos da luta entre resistência cultural e abandono político.
Nesse cenário, o dever de preservar a história não pode ficar apenas nas mãos do Estado. Ele se estende à sociedade civil: aos artistas, aos professores, aos estudantes, aos moradores e a todos aqueles que compreendem que patrimônio não é passado — é presença viva que constroi o futuro. Quando cuidamos das nossas raízes, não apenas valorizamos a cidade — reafirmamos nossa cidadania, nossa identidade e nosso direito de pertencer a um lugar com memória.
Fortaleza Ceará Online
Inauguração da Coluna da Hora e contexto histórico da década de 1930. Link: https://fortalezacearaonline.blogspot.com/2014/01/inaugurada-na-virada-dos-anos-de-1933.html
Ceará na História
Justificativas da demolição da Coluna da Hora e reflexões sobre o patrimônio histórico. Link: https://cearanahistoria.blogspot.com/2016/10/praca-do-ferreira-as-justificativas.html
O Povo Online
Matéria sobre a revitalização da Coluna da Hora e seu papel simbólico na cidade. Link: https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2024/07/19/coluna-da-hora-na-praca-do-ferreira-e-revitalizada-e-fonte-volta-a-funcionar.html
Imagem do coreto
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Link: Ficheiro:Praça do Ferreira com coreto 1920.PNG – Wikipédia, a enciclopédia livre